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Foto do escritorRicardo R. G. Albuquerque

Uma semana de pandemia... em 1918


Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, em 1909/Biblioteca do Congresso/EUA

Pouco mais de um século depois da gripe espanhola, o mundo se defronta com mais uma pandemia. A Internet e os meios de comunicação são parte relevante no processo, tanto em seus aspectos mais positivos, esclarecendo as dúvidas da população, quanto nos negativos, espalhando desinformação e refletindo disputas políticas.


Não faltam dados sobre a gripe espanhola na rede, incluindo o fato de que surgiu na realidade numa base militar nos EUA e que recebeu seu nome devido ao grande volume de informações divulgadas a partir da Espanha, país neutro na Primeira Guerra Mundial. Acredita-se que 50% da população mundial e 65% dos brasileiros tenham se infectado. O número oficial de mortos no Brasil é de 35 mil, mas no mundo alcançou dezenas de milhões.


E como a pandemia foi noticiada na imprensa brasileira? Podemos ter uma ideia a partir do noticiário do jornal Correio da Manhã durante a semana de 19 a 26 de outubro de 1918. Todas as citações abaixo são deste periódico. Por uma questão de clareza, optei por atualizar a ortografia da época e a construção das frases, especialmente o uso de vírgulas. Por exemplo, gripe era escrito na grafia francesa, “grippe”, e a doença era também descrita como influenza “espanhola” ou “hespanhola”. De resto, as citações são literais, conforme o original digital da Biblioteca Nacional.


GRIPE NÃO MATA


Acredita-se que o vírus tenha chegado ao país trazido por marinheiros que aportaram em Recife, em setembro de 1918, e também através do navio mercante inglês SS Demerara, que fez escala no Rio em outubro. Assim como hoje, os governos demoraram a dar a importância devida à epidemia (vale lembrar que na América e Europa vigorava a censura devido à guerra mundial). No dia 19, um artigo assinado por Antonio Torres, intitulado Sonho de Doente, traz as críticas da população à inação governamental em tom irônico.


Como se estivesse num delírio provocado pela febre, o articulista vê-se chegando de navio ao Rio e estranhando que um hotel anunciasse produtos farmacêuticos como parte de sua propaganda. Seu interlocutor retruca: “Pois o senhor não sabe? Esta cidade é interessantíssima. Tem costumes sui generis, e um deles é cultivar o microbio da gripe. Está provado, segundo a Diretoria de Higiene desta cidade, que a gripe é inofensiva. Gripe não mata. As pessoas que morrem de gripe ou o fizeram de propósito, por elegância, ou envenenadas pelo médico, ou porque sofrem outras moléstias.”


De fato, a epidemia provocara a demissão, dois dias antes, do Diretor de Saúde Pública (equivalente ao de ministro da Saúde), Carlos Seidl, no cargo desde 1912. Ainda no dia 19, numa carta reproduzida na íntegra, Seidl queixa-se de que fora considerado pelo presidente da República como “responsável pela epidemia”. A resposta do governo está na mesma edição, dando conta que o presidente da República “não lhe atribuiu a responsabilidade pela pandemia de gripe no Brasil, e sim pela morosidade em combatê-la”.


A mudança abriu caminho para a entrada em cena de Carlos Chagas, então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, que organizou uma rede de hospitais e postos de socorro pela cidade, fato amplamente divulgado pelo jornal nos dias 19 e 20. E, como sempre, o otimismo oficial imperava: Em nota oficial divulgada no dia 24, o presidente da República, Wenceslau Brás, garante que todas as providências estavam sendo tomadas e finaliza:


“Não há, pois, razão para continuar o pânico que se vem estabelecendo no seio da população, tanto mais quanto a mortalidade causada pela moléstia, que todos sinceramente deploram, é entre nós, considerada a extensão que tem tido, muito inferior a quase todos os países onde está grassando nesse momento, quer na Europa, quer na América.”


CIDADE VAZIA E CARIOCAS PÁLIDOS


Assim como na atual pandemia, o cotidiano carioca sofreu uma mudança brusca. A edição do dia 19 do Correio traz uma nota intitulada “A vida na cidade”, lamentando essa mudança:


“Ao invés de apresentar aspecto animador, a cidade ontem dava a mais triste impressão do que nos dias anteriores. As ruas estavam desertas, o movimento comercial paralisado, nula absolutamente nula sua vida agitada e alegre. Os automóveis, cada vez mais raros, não cessavam de transportar aflitos que procuravam médicos ou farmácia que os atendesse, ou pálidos fregueses, que, atingidos pelo mal, se recolhiam a suas residências.”


Tabelas de preços de medicamentos e produtos alimentícios são divulgadas no dia 22, assim como reclamações sobre especulação de preços. O jornal traz uma lista com o endereço de postos de socorro e hospitais no dia seguinte e, no dia 24, revela-se que o campeonato sul-americano de futebol será suspenso. Nesta mesma edição, o prefeito manifesta a preocupação com a falta de pão, por causa das padarias fechadas (as aulas já haviam sido suspensas há dias).


A crise afeta principalmente o subúrbio: “A fome nos subúrbios já se faz sentir porque as casas comerciais que ainda funcionam vão esgotando seus estoques e não recebem as encomendas feitas aos importadores.”


OS COVEIROS E OS MORTOS


O vírus tipo H1N1 da gripe espanhola podia ter uma ação especialmente virulenta em alguns casos, causando a morte rápida. A semana de 19 a 26 de outubro marcou uma fase dramática da epidemia no Rio (até novembro foram registradas mais de 14 mil mortes). A falta de infraestrutura para lidar com esse tipo de emergência logo ficou evidente pelo lúgubre acúmulo de corpos insepultos, uma situação agravada por uma greve de coveiros no Cemitério do Caju.


No dia 20, a Saúde Pública determina que os grevistas sejam substituídos por “duas turmas de presos da Casa de Correção e Detenção, vigiados por praças do Exército e da Polícia. Esta providência foi feliz, porque já era insuportável o cheiro que se desprendia dos arredores do cemitério do Caju ameaçando agravar ainda mais os males da epidemia.”


Com alívio, publica-se na quarta-feira, dia 23, que os registros de novos casos diminuíram, mas não a mortalidade. “De igual modo, multiplicaram-se as reclamações que nos chegaram de todos os bairros contra o serviço de remoção de cadáveres, bastando dizer que não há um só distrito do Rio em que não se encontrem corpos em franca decomposição, quer em casas particulares, quer em vias públicas. No Cemitério do Caju estão setecentos defuntos sem sepultura.”


O governo anunciou que novos coveiros teriam seus contratos “a preços vantajosos”, segundo a edição do dia 23. Por fim, o exército acabou ocupando o Cemitério do Caju no dia 24, fato noticiado no dia seguinte com ampla manchete na página interna.


ALFAZEMA, CANELA E AR SALITRADO


Se houve escassez de coveiros, o mesmo não se aplica a todo tipo de recomendações e remédios. Já no dia 18 de outubro afirmava-se que “com a recomendação de sumidades médicas de que o ar salitrado do mar é o único preservativo contra a gripe, tem-se notado uma verdadeira romaria às praias do Leme”. A manchete da primeira página no dia 21 informava que “não havendo pessoal suficiente para a desinfecção geral, a Saúde Pública recomenda aos donos de casa a desinfecção de seus domicílios. É também conveniente queimar alfazema e incenso nas casas”.


Tal como a cloroquina nos dias de hoje, os medicamentos contra malária recebiam destaque. O quinino era receitado tanto como “preservativo” como para a cura. Havia poucas dúvidas sobre a necessidade de isolamento. Uma listagem de oito recomendações feitas à população, igualmente publicada no dia 21, traz os seguintes itens:


  • Evitar aglomerações, principalmente à noite.

  • Não fazer visitas.

  • Tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina mentolada, gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras.

  • Tomar, como preventivo, internamente, qualquer dose de quinino na dose de 25 a 50 centigramas por dia, e de preferência no momento das refeições.

  • Evitar toda a fadiga e excessos físicos.

  • O doente, nos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio. Não deve receber absolutamente nenhuma visita.

  • Evitar as causas de resfriamento, é de necessidade tanto para os sãos como para os doentes e convalescentes.

  • As pessoas idosas devem aplicar com mais rigor ainda esses cuidados.

Remédios milagrosos tinham seu espaço, como o da “Pariquyna”, como preservativo e para rápida cura, superior ao quinino; ou as “PÍLULAS SUDORÍFICAS DE LUIZ CARLOS na dose de 2 por dia, como preservativo, e no caso de estar atacando, use de 6 a 8 por dia. Na convalescença usem o VANADIOL, o melhor fortificante geral e enérgico levantador das forças”.


Um grande anúncio, no dia 25, revela que “O Exmo. Sr. Dr. Diretor Geral da Saúde Pública indicou para o tratamento e também como preventivo da gripe a canela, em cuja análise encontraram excelentes propriedades para esse fim. Indicai e tomai, pois, VIDALON em cuja composição entra a canela. Este excelente e incomparável produto alcança, assim, mais uma glória. Indicado largamente na convalescença desta terrível epidemia, VIDALON é, agora, um excelente preventivo.”


… E TUDO ACABA EM CARNAVAL


Uma das vítimas mais ilustres da epidemia acabou sendo o presidente da República eleito, Rodrigues Alves, que faleceu em janeiro de 1919. No Rio, o número de casos teve uma redução brusca no final de outubro e, apesar de muitos meses de expectativa, a epidemia arrefeceu. Acredita-se, inclusive, que o carnaval de 1919 tenha sido um dos mais animados da época, como se a população decidisse decretar de uma vez por todas o fim dos seus tormentos.

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