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  • Foto do escritorRicardo R. G. Albuquerque

Fake News e teorias da conspiração não são novidades


Ton Koldewijn/Freeimages

Em tempos de fake news e teorias da conspiração, é fácil creditar à internet e às novas modalidades de intercâmbio de informação a culpa pelo conteúdo que é consumido pelo público em geral. Mas talvez a mudança real tenha acontecido somente em termos de tecnologia – ou seja, a forma como esse conteúdo é transmitido – e não em relação aos temas em si.


Crimes e monstros medievais


Em História das Comunicações, Mitchell Stephens conta que, ao lado de livros religiosos, os temas prediletos dos primeiros livretos impressos eram… crimes. Quanto mais hediondos, melhor: envenenamentos, esquartejamentos, mutilações… Sempre contados do ponto de vista do criminoso, numa confissão que antecedia a execução, os livretos geralmente terminavam em piedosos arrependimentos e conselhos aos jovens, provavelmente numa forma de tornar o tema menos sensacionalista.


As publicações desses primórdios da imprensa igualmente eram férteis em histórias fantásticas. Avistamentos de dragões e monstros em geral estavam entre os temas prediletos, ao lado de histórias como a do "soldado que deu à luz a uma criança". Por vezes, a litogravura de um monstro avistado numa determinada localidade era reutilizada para outra publicação em outra cidade, revelando que os dragões, além de assustar o povo, gostavam de viajar.


Impostores Vitorianos


Outro tema que rendia polêmicas intermináveis era o das pessoas que pretendiam ser nobres desaparecidos ou mortos. No século XIX, a imprensa radical inglesa apoiava com entusiasmo essas pretensões como uma forma de desafiar os privilégios da nobreza, que facilitava a tarefa com suas idiossincrasias e excentricidades. Intermináveis processos judiciais, com dezenas de testemunhas de lado a lado, permitiam explorar o assunto por anos a fio e davam margem a todo tipo de golpes. Vejamos alguns desses casos, relatados no livro Os Grandes Impostores, de Jan Bondeson.


Uma das primeiras pretendentes dos anos 1800 foi Olivia Serres, que alegava ser filha do Duque de Cumberland. Esse tipo de alegação costumava ser defendida através de panfletos, uma forma de comunicação muito utilizada na época. Após a morte de Olivia, em 1834, a reivindicação continuou a ser feita através de sua filha, Lavínia, também através de sucessivos panfletos. No julgamento do caso, o advogado de Lavínia mencionou outra lenda – a de que o Rei George III teria se casado secretamente com uma mulher chamada Hannah Lightfoot, em 1759 -, uma outra lenda que prosperou ao longo da era vitoriana e até o século XX, com dezenas de "descendentes" do suposto casamento.


O nobre de Wagga Wagga


Desaparecido no mar em 1854, Roger Tichborne era uma figura singular. Criado pela mãe na França, ele foi praticamente sequestrado na adolescência pelo pai, James, preocupado com o fato um de seus herdeiros mal falar inglês e não ter hábitos compatíveis com a nobreza. Após alguns anos numa escola militar, na qual era ridicularizado pelo seu físico frágil e sotaque, o jovem dedicou-se a beber e a fumar em excesso. Uma desilusão amorosa fez com que decidisse viajar pelo mundo e, após zarpar do Rio de Janeiro para Kingston, na Jamaica, nunca mais foi visto.


Em 1865, um açougueiro falido que morava num casebre na aldeia de Wagga Wagga, no interior da Austrália, alegou ser Roger Tichborne, em resposta às investigações promovidas pela mãe de Roger, Henriette, que jamais havia se conformado com a morte do filho. O suposto nobre usava o nome de Thomas Castro, mas ao longo dos anos ficou mais ou menos demonstrado que se tratava de Arthur Orton, um dos doze filhos de uma família pobre do East End londrino.


Chegando à Inglaterra em 1866, o pleiteante foi reconhecido por Henriette, que, no entanto, faleceu pouco depois. Isso não impediu o início de batalhas judiciais que duraram até 1873, sempre com farta cobertura da imprensa e divulgação de muitos panfletos e baladas. Cerca de 40 mil libras foram coletadas com o chamado bônus Tichborne, que prometia pagar 100 libras para quem investisse 20 libras, assim que fossem reconhecidos os direitos de herança do suposto Sir Roger. Gordo e folgazão, ele se tornou uma celebridade em Londres.


Castro/Orton não falava uma palavra de francês e desconhecia os ritos católicos com os quais Roger Tichborne fora criado, mas isso não impediu que dezenas de testemunhas depusessem a seu favor (algumas das quais mais tarde condenadas por perjúrio). Mas, enfim, ele acabou sendo condenado à prisão e morreu na miséria em 1898. De forma curiosa, o caso contribuiu para a breve carreira política de um de seus advogados, Edward Kenealy, que chegou a promover uma passeata com 100 mil pessoas a favor de seu cliente e fundou um jornal, chamado Englishman, que teve edições até 1886.


De Duque a comerciante


Mais curioso ainda é o caso de Anna Maria Druce, que, em 1898, alegou que seu sogro, Thomas Charles Druce, um bem-sucedido comerciante falecido em 1864, era na verdade o Duque de Portland, William John Cavendish-Bentinck-Scott. O duque, que morreu em 1879, era uma figura altamente excêntrica mesmo para os padrões ingleses: recluso completo, mal era visto, inclusive pelos empregados (que eram proibidos de lhe dirigir a palavra), o que dava origem a todo tipo de boatos sobre seu comportamento na imprensa.


De acordo com Anna, o duque teria vivido vários anos como Thomas Druce. Casou-se com a mãe de seu marido, mas abandonou a família e forjou a própria morte ao se cansar da vida comum. Porém, não retornou imediatamente à sua vida de nobre: primeiro, passou um ano num asilo de loucos, passando-se por um médico homeopata chamado Harmes, antes de finalmente retornar à sua mansão. Anna reivindicava a abertura do caixão de Thomas Druce para poder provar suas teorias.


Em 1901, ela foi derrotada nos tribunais, mas a história não havia terminado. Outro descendente de Thomas Druce, George Hollamby Druce, que vivia na Austrália, chegou a Londres para pleitear o título de duque. Foi emitido o bônus Druce-Portland, que teria arrecadado cerca de 30 mil libras, e uma nova batalha judicial começou, também com farta cobertura da imprensa. Agora, alegava-se que na verdade o duque, ainda adolescente, havia iniciado a farsa em 1816, ano do primeiro casamento de Thomas Druce. Em 1907, o juiz autorizou a abertura do caixão, comprovando-se que os restos mortais eram realmente de Thomas Druce.

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